Prelo

Começar a Escrever: Como (não) falar de si mesmo

Tiago Novaes Episode 120

#120 – Recentemente, numa visita à biblioteca da minha nova cidade, topei com uma edição d'As aventuras de Tom Sawyer, um clássico de Mark Twain. Logo no prefácio, o autor esclarece: Tom Sawyer existiu. Mais que isso – foram muitos os colegas de infância que inspiraram a criação do personagem.

O protagonista e suas peripécias são o resultado da combinação de lembranças pessoais e impressões dos amigos de escola. O pulo do gato: além de testemunho, o clássico é também invenção. O vivido, nas páginas de um livro, é uma argila que pode tomar outras formas. 

Ao falar de si mesmo, de si mesma, temos um problema. Somos nós mesmos o tempo todo. Seja escolhendo o próximo filme a assistir no serviço de streaming ou amarrando um cadarço, não conseguimos deixar-nos de lado.  Sou eu ali, escrevendo, mesmo quando para me libertar de mim mesmo. Sou ali ao falar de um terceiro, projetando meus desejos e receios. E nesta insistência, posso despejar no papel a minha própria compulsão e banalidade.

Byung Chul-Han diria que vivemos em um tempo de transparência e exposição. Como se o individualismo e o ensimesmamento, valores de uma sociedade de consumo, colocassem em risco a nossa própria materialidade. Para existir, precisamos mostrar que estamos vivos. "Compartilhar" impressões, opiniões, credenciais. Há quem diga que a autoficção, como novo gênero romanesco, surgiu nesse contexto. 

Em contrapartida, não há como refutar que a nossa voz e presença são o sal do nosso texto. Sem o autor, a obra empalidece, torna-se inexpressiva. Se você exagera no sal, a tal "voz narrativa" pode soar a um locutor esportivo, tentando colocar palavras na boca do texto. Sem ela, uma inteligência artificial qualquer poderia substituí-lo. 

No novo episódio do Prelo, falamos das armadilhas da autoficção. Mas também de como a escrita, como ato revolucionário, nos abre uma possibilidade fascinante – se os limites do nosso mundo são os limites da linguagem que temos à disposição, escrever é a melhor maneira de ampliar o horizonte e o entendimento. 

Produção e edição de áudio: Fábio Corrêa